O incenso que valia mais que ouro e já foi considerado a cura para todas as doenças
Por Christopher P. Baker, BBC Travel, 1 novembro 2020
Um aroma sedutoramente almiscarado permeia as cidades e a cultura do país, e a todo momento eu posso sentir esse cheiro característico pairando pelo ar. Fui atraído pelo perfume hipnótico do incenso queimando lentamente do lado de fora das lojas em vasos adornados de ouro e incensários de prata. As barracas ao ar livre estavam repletas de especiarias, montanhas de tâmaras e pilhas de mirra.
Mulheres de abaya (túnica longa e solta) preta olhavam os lenços de seda coloridos, enquanto os homens vestidos com túnicas brancas e kuma (chapéu tradicional) davam uma conferida nas montanhas de pepitas de olíbano, resina aromática também conhecida como franquincenso, que quer dizer “incenso puro”. O souq de Mutrah é um dos poucos lugares do mundo onde se pode comprar ouro, mirra e olíbano, os três presentes oferecidos pelos Três Reis Magos ao menino Jesus, segundo a crença cristã. Eram os presentes mais preciosos que alguém poderia ofertar há 2 mil anos, quando o olíbano valia seu peso em ouro.
Usado durante 6 mil anos como perfume e panaceia, o olíbano é uma resina aromática colhida de árvores do gênero Boswellia, que crescem apenas em uma estreita faixa climática que se estende da região conhecida como Chifre da África à Índia e em partes do sul da China. A maior parte do fornecimento mundial de olíbano é proveniente da Somália, Eritreia e Iêmen, países assolados por conflitos nos últimos anos, o que teve um impacto negativo na produção de incenso. Mas o pacífico Omã produz o olíbano mais refinado e caro do mundo, uma substância que os antigos egípcios chamavam de “suor dos deuses”. E a obstinada árvore Boswellia sacra prospera no terreno inóspito da província de Dhofar, no sul do país.
O valor da resina de olíbano é determinado por sua cor, tamanho e concentração de óleo. O tipo mais valioso, conhecido como hojari, é proveniente de um cinturão estreito de microclima seco nas montanhas Dhofar, fora do alcance das monções de verão que cobrem a ponta da Península Arábica. Hoje, esta região faz parte do que é conhecido como Rota do Incenso, em Omã, declarado Patrimônio Mundial pela Unesco. “O comércio de olíbado que floresceu nesta região por muitos séculos [foi] uma das atividades comerciais mais importantes do mundo antigo e medieval”, diz a descrição da Unesco. Daqui, caravanas com milhares de camelos e escravos carregadas de incenso partiam em uma dura jornada de 2 mil km pelo deserto da Arábia, com destino aos impérios egípcio, babilônico, grego e romano. Enquanto isso, navios transportavam a resina para portos mais distantes, como a China. O filósofo romano Plínio, o Velho (23-79 d.C.) escreveu que seu comércio tornara os árabes do sul “as pessoas mais ricas da Terra”.
Cura para todos os males
Conhecido como a aspirina, a penicilina e o viagra da época, o olíbado era considerado um remédio eficaz para tudo, desde hemorroidas a cólicas menstruais e melanomas. O médico militar grego Pedânio Dioscórides descreveu o incenso como uma droga maravilhosa e afirmou que a goma da resina poderia “preencher a cavidade de úlceras” ou “fechar feridas sangrentas”. O Papiro Ebers, o tratado médico mais importante do Antigo Egito, menciona o incenso como tratamento para asma, hemorragia, infecções na garganta e vômito, entre outras coisas.
Os egípcios importaram grandes quantidades para usar também como perfume, repelente contra insetos e mascarar o odor de putrefação ao embalsamar os corpos. Inclusive, foi encontrada uma pomada de olíbano na tumba do faraó Tutancâmon, quando a mesma foi descoberta em 1922. O incenso era queimado durante cerimônias para purificação, o que sugeria um aspecto divino. Acreditava-se que seus redemoinhos de fumaça ascendiam diretamente ao céu. Por isso, muitos templos do mundo antigo eram impregnados por sua fragrância. “Nós queimamos olíbano para repelir cobras”, diz o guia local Amur bin Hamad al-Hosni enquanto me conduz pela região de Ad Dakhiliyah, no norte de Omã, até a fortaleza de Nizwa, que data do século 17. “E para afastar os djinn (espíritos malignos)”, acrescenta Maitha Al-Zahraa Nasser Al Hosni, vendedora da loja de souvenir da fortaleza, que cheirava a incenso.
Durante minha temporada em Omã, fiquei surpreso ao ver como o olíbano continua sendo parte integrante da cultura local. Na cidade de Nizwa, vi homens mascando a resina comestível como chiclete para refrescar o hálito. “As mulheres grávidas também mascam”, me contou um comerciante, explicando que as futuras mães acreditam que as propriedades da resina garantem o nascimento de um bebê inteligente. Também é usado em medicamentos e chás para ajudar na digestão e deixar a pele saudável. Os moradores perfumam suas casas com olíbano para repelir mosquitos, e queimar o incenso após uma refeição é considerado sinal de hospitalidade.
O tipo de olíbano usado é visto como símbolo de status e sinal de respeito. “Os omanis juram que as ‘lágrimas’ de olíbano branco de Jabal Samhan ou Hasik são as melhores”, afirma Trygve Harris, dona da Enfleurage, uma das destilarias de incenso de Omã, fazendo referência ao olíbano colhido no sul do país, na costa leste de Dhofar. “É considerado mais puro, é o aroma mais apreciado. Mas meu favorito é o olíbano preto dos penhascos de Al Fazayah, a oeste de Salalah”, acrescenta, enquanto me mostra uma sala cheia de alambiques antigos de cobre, no qual ela extrai o óleo essencial complexo e delicado da resina.
Diferentes tipos de solo, microclimas e até épocas de colheita produzem resinas de cores distintas. Geralmente, quanto mais branca a resina, mais valiosa. No verão, Harris fabrica até sorvete de olíbano, que os locais consomem avidamente na tenda que ela aluga no souq de Mascate. Harris foi a Omã pela primeira vez em 2006 para comprar olíbano para sua loja de óleos essenciais aromáticos em Nova York. “Mas mesmo em Omã, eu só conseguia encontrar óleo da Somália, e não óleo de Omã, de alta qualidade”, relembra. “Ninguém o destilava para vender naquela época. Nem mesmo a Amouage!”, completa Harris, se referindo à principal empresa de perfumes de Omã, especializada na produção de fragrâncias de luxo de olíbano. Um frasco de 100 ml de perfume Amouage com notas de olíbano custa 283 libras (R$ 1,75 mil).
Em 2011, ela se mudou para Salalah, capital de Dhofar, e abriu a Enfleurage. Hoje, estabelecida na capital de Omã, Harris vende para pequenas perfumarias internacionais, empresas de óleos essenciais e “pessoas que querem um olíbano refinado de alta qualidade e que não precisam de 1.000kg”. Ela produz de 2 kg a 3 kg por dia de essência de Boswellia sacra, no valor de 555 libras (R$ 4 mil) por kg. Praticamente todo o olíbano de Omã é colhido das árvores Boswellia sacras que crescem livremente no escaldante deserto de Dhofar e pertencem às tribos locais. A colheita começa no mês de abril, quando o aumento das temperaturas faz com que a seiva flua mais facilmente. Os trabalhadores fazem pequenas incisões na casca da árvore, liberando uma seiva branca e leitosa que escorre pelo caule como cera de vela. A seiva é deixada em repouso por dez dias até se solidificar em uma goma. Depois que as “lágrimas” são raspadas, os agricultores cortam o mesmo local novamente. Eles repetem esse processo várias vezes, sendo a colheita final de outono que produz a resina mais pálida e valiosa. Após cerca de cinco anos, esse processo é interrompido, e a árvore não é tocada pelos cinco anos seguintes. No entanto, nos últimos anos, as raras árvores Boswellia sacra, em Omã, foram ameaçadas pela crescente demanda global.
“O interesse renovado por olíbano em óleos essenciais e na medicina holística no mercado internacional aumentou o desgaste no habitat natural da Boswellia”, diz o botânico Joshua Eslamieh, autor do livro Cultivation of Boswellia: Sacred Trees of Frankincense (“Cultivo de Boswellia: Árvores Sagradas de Olíbano”, em tradução livre). A Boswellia sacra agora está na lista internacional de espécies “quase ameaçadas” de extinção, e um estudo recente publicado na revista científica Nature afirma que a árvore está morrendo tão rapidamente que a produção de olíbano vai diminuir em 50% nos próximos 20 anos.
Outro relatório alerta que a produção já caiu de uma média de 10 kg por árvore para apenas 3,3 kg, e mostra que a população de Boswellia sacra na Reserva Natural Jabal Samhan, em Dhofar, diminuiu 85% nas últimas duas décadas. Os cientistas apontam a seca, o excesso de pastoreio, os ataques de insetos e a colheita ilícita por contrabandistas somalis armados como razões para o declínio da resina, o que levou o sultão de Omã a enviar guardas armados para proteger os vales da região nos últimos anos. No entanto, de acordo com o gerente de projetos da Sociedade Ambiental de Omã, Mohsin Al Amri, a colheita não sustentável é a maior ameaça para a espécie. “Trabalhadores menos experientes, temporários estão danificando as árvores ao abandonar as técnicas tradicionais de colheita”, afirma.
Árvores menores e que ainda não amadureceram estão sendo talhadas, enquanto árvores adultas estão sofrendo com a colheita excessiva para atender à crescente demanda. Além disso, menos mudas de Boswellia estão sobrevivendo. Eu nunca diria isso a julgar pelas montanhas de pepitas de olíbano vendidas nas barracas do souq de Mutrah, separadas e precificadas de acordo com sua cor e origem. O labirinto de becos e vielas do mercado acabou me levando a um passeio pela orla Corniche, que fica na zona de Mutrah, e se curva ao longo da costa do Mar Arábico. Os tradicionais dhows (embarcações árabes) flutuavam na baía envoltos pelas montanhas. E o ar, é claro, estava repleto da inconfundível fragrância do indefectível perfume de Omã.