Por Janaina Garcia, colaboração para CNN Brasil
19 de abril de 2021 às 05:00
Enquanto número de casos de ansiedade e depressão aumentam, pacientes com transtornos psiquiátricos têm dificuldade de aderir a assistência virtual
Uma espécie de âncora na chamada “vida normal” — ou uma boia na qual, no meio de um mar revolto, ela pudesse se manter a salvo do afogamento. Essas são as imagens às quais a cenógrafa Luciene Grecco Ferreira recorre para descrever o tratamento psiquiátrico que buscou, sem sucesso, no hospital-dia da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) em março de 2020.
Lu Grecco, como é conhecida no meio artístico, havia ficado três meses internada em outro hospital depois de uma tentativa de suicídio, ápice de uma crise depressiva da artista com trabalhos em programas como “Castelo Rá Tim Bum” e “Mundo da Lua”, da TV Cultura.
Em uma folga de fim de semana, ela conheceu o hospital-dia da Unifesp e convenceu sua família de que seguiria o tratamento por ali. Conseguiu a alta médica onde estava se tratando. Mas, três dias depois, veio o baque: o hospital-dia estava com todas as atividades coletivas e presenciais suspensas em razão da pandemia. “Foi muito frustrante. E também um choque ter alta esperando o atendimento no hospital-dia, mas constatar que eu ficaria à deriva. É como se eu caísse de novo na arena dos leões”, define.
Lu só conseguiu atendimento presencial em setembro, no Caism (Centro de Atenção Integrada à Saúde Mental), ao qual o hospital-dia é vinculado — e, ainda assim, sem as atividades de grupo que haviam sido tão fundamentais na recuperação do pós-tentativa de suicídio.
Assim como a cenógrafa, outros pacientes que buscaram atendimento psicológico e psiquiátrico na rede pública durante a pandemia tiveram dificuldades para se manter em tratamento. O motivo foi a substituição de grande parte das atividades presenciais pelo atendimento remoto.
Se a troca era fundamental por conta do coronavírus, nem sempre a modalidade virtual contempla a demanda de quem tem transtornos desse tipo. A necessidade de novas formas de atendimento conflita justamente com um momento em que transtornos de saúde mental têm um aumento dramático no país.
Em fevereiro deste ano, uma pesquisa da USP (Universidade de São Paulo) revelou que, entre 11 países avaliados, o Brasil lidera os casos de depressão e ansiedade durante a pandemia do coronavírus. Pelo estudo, o país foi o que mais registrou casos de ansiedade (63%) e de depressão (59%) relacionados às restrições durante a pandemia e o isolamento social.
A intermitência de atendimentos, no entanto, não é exclusiva do Brasil. Em outubro do ano passado, uma pesquisa da OMS (Organização Mundial da Saúde) feita em 130 países já mostrava que a pandemia de Covid-19 interrompeu serviços essenciais de saúde mental em 93% deles, paralelamente ao aumento da demanda por tratamento nessa área.
Focos de atendimento no SUS
Na rede pública brasileira, a atenção em saúde mental acontece pelo SUS (Sistema Único de Saúde), organizada por níveis de complexidade. Ela ocorre dentro da RAPS (Rede de Atenção Psicossocial) e primordialmente no âmbito municipal, em Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), Serviços Residenciais Terapêuticos, Centros de Convivência e Cultura e Unidades de Acolhimento. Em casos mais graves, segue para as instâncias estaduais e federais, em leitos de atenção integral em hospitais gerais.
Desde a Reforma Psiquiátrica, de 2001, o objetivo é buscar um modelo de tratamento mais focado no convívio com a família e a comunidade do paciente, em contraste com o isolamento que ocorria nos antigos manicômios.
Segundo o Ministério da Saúde, entre os serviços públicos de referência em saúde mental no país estão as cerca de 42 mil UBSs (Unidades Básicas de Saúde), na atenção primária. Além disso, são 2.657 CAPS, onde o cidadão é atendido e pode ser encaminhado para outro serviço especializado da rede.
Procurada, a pasta não informou se tem um balanço atualizado de ocupação e oferta desses serviços na pandemia ou se passou alguma orientação para os municípios durante a crise sanitária.
Já a Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo admitiu que houve uma redução do número de atendimentos nos CAPS da cidade em 2020: foram realizados 282.730 atendimentos, diante de 293.614 em 2019. O dado não diz respeito a usuários diferentes, e sim, ao número de atendimentos. O órgão informa que as consultas, na pandemia, podem ser realizadas por meio de teleatendimentos, em maior número, “e de atendimentos presenciais conforme a necessidade”.
Aumento de ideações suicidas
Um dos serviços de atenção à saúde mental custeados pelo SUS em São Paulo é o Caism, buscado por Lu Grecco, e que funciona como hospital-escola do Departamento de Psiquiatria da Unifesp. Ele é atualmente um dos maiores centros de pesquisa psiquiátrica da América Latina.
O Caism conta com atendimento médico, ambulatorial e de hospital-dia, no qual estão previstas atividades terapêuticas em grupo e a possibilidade de internação. São 250 profissionais da equipe própria, além de aproximadamente 200 voluntários entre portadores de transtornos mentais e familiares, psiquiatras, psicanalistas e psicólogos.
O diretor do Caism é o psiquiatra e pesquisador da Unifesp Elson Asevedo. Ele reconhece que as medidas sociais de contenção da pandemia acabaram impactando o atendimento de saúde mental no hospital-dia. “Como a lógica aqui é a permanência do paciente o dia todo, a proposta fica muito prejudicada quando se restringe a circulação de pessoas, assim como prejudica nos CAPS”, aponta. Asevedo afirma que o serviço foi mantido apenas aos pacientes que já eram atendidos e de forma individual e remota, por meio de teleconsulta.
“Tivemos uma perda no atendimento remoto de 30% dos cerca de 50 pacientes que eram acompanhados no hospital-dia”, diz o psiquiatra. Por outro lado, ele relata que houve um aumento nos casos de ideação ou tentativas suicidas no ambulatório, sem especificar o percentual.
Crianças e adolescentes vulneráveis
No Caism, um dos grupos particularmente afetados pela supressão de atividades terapêuticas presenciais, na pandemia, foi o de crianças e adolescentes. Esse é um público que já teve de se submeter a atividades escolares remotas em uma fase de desenvolvimento das habilidades cognitivas na qual a socialização, segundo especialistas, é fundamental.
O coordenador da área no Caism, o psiquiatra infantil Marcus Vinícius Ribeiro avalia que pacientes que já apresentavam questões de saúde mental anteriores à pandemia sentiram ainda mais a perda do atendimento presencial.
O médico destaca o agravamento de quadros de ansiedade anteriormente diagnosticados e intensificados pelo isolamento. “É muito comum ouvirmos crianças e adolescentes que têm medo de se contaminar e de que seus pais morram. Isso definitivamente entrou nas preocupações deles”, afirma.
Pacientes do Caism um pouco mais velhos também são exemplos dessa situação. “Sofro demais pelos meus familiares”, afirma a estudante de medicina Amanda, 26, que veio do interior da Bahia para se tratar em São Paulo. “Tento ignorar o sofrimento que essa pandemia me traz ao me apegar a algumas coisas para ocupar a mente, mas, quando vejo as estatísticas aqui do Brasil, penso que todos vamos morrer e sofro demais pelos meus familiares e mesmo por quem eu nem conheço”, completa.
Pacientes esquizofrênicos regridem
Há dez anos voluntária no Ambulatório de Primeiro Surto Psicótico do HC, a psicóloga e psicanalista Viviane Setti analisa que o modelo de atendimento on-line adotado na pandemia é necessário, mas reconhece que parte do público que ela atende regrediu no tratamento nos últimos meses: ou por não se adaptar à terapia on-line ou por perder aspectos de socialização do contato direto entre os próprios pacientes.
A profissional explica que é comum pacientes apresentarem um sentimento de perseguição — o que se acentua gravemente no atendimento on-line. A maioria tem diagnóstico de esquizofrenia.
“Conforme o avanço no tratamento, vários desses pacientes marcavam de se encontrar a caminho do atendimento, até começarem a vir sozinhos. Alguns regrediram muito e isso é terrível, embora possa ser manejado”, conclui.
Sem apoio em casa e nos ambulatórios
A restrição de serviços presenciais afetou também o atendimento nos mais de 30 ambulatórios médicos do departamento de psiquiatria do Hospital das Clínicas da FMUSP (Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo). Segundo a diretora dos ambulatórios do Instituto de Psiquiatria do HC, a psiquiatra Vanessa Favaro, as consultas ganharam maior espaçamento, com boa parte delas sendo transferida para a modalidade on-line. “Pacientes com quem mantínhamos maior contato terapêutico têm mais chances de angústia e depressão agora. Notamos que vários perderam o apoio que tinham na família ou suporte financeiro. E este ano há uma tendência maior de que isso aconteça”, avalia.
A psiquiatra reconhece que, à medida que a pandemia não chega a um fim, mesmo as pessoas mais resilientes tendem a ter dificuldades em usar os recursos mentais. “Nossa impressão é que os pacientes têm aguentado o quanto podem, mas como, ao longo do ano, usaram os recursos mentais que podiam para lidar com a situação, tememos a proliferação de outros transtornos para o futuro à medida que a crise não acabe”, adverte.